domingo, 6 de dezembro de 2009

Algures, em Moçambique

Na noite de 8 para 9 de Novembro de 2005, após a leitura da lição sobre o duelo de ‘O Evangelho Segundo o Espiritismo’ manifestou-se um amigo que vinha seguindo, em relação obsessiva, um irmão relacionado com um dos componentes do grupo. Queixava-se ele do mau tratamento recebido durante a vida por aquele, por quem havia sido desprezado, devido ao facto de ser negro. A situação ocorreu em Moçambique, quando aquele território era colónia portuguesa.

Espírito: Se o senhor tivesse as queixas que eu tenho não falava assim.
Doutrinador: Todos nós temos queixas. Todos nós.
Espírito: Eu tenho. Tenho muitas, muitas, muitas...
Doutrinador: Não duvido. Certamente foste ofendido na tua vida.
Espírito: Humilhado, maltratado. Nem era humano! Era preto!
Doutrinador: E foste maltratado por racistas?
Espírito: Pelos brancos.
Doutrinador: Em África?
Espírito: Pois, onde é terra de preto?
Doutrinador: Olha, meu querido amigo e querido irmão...
Espírito: Mas é terra de preto para onde vão os brancos mandar.
Doutrinador: Agora já não é bem assim.
Espírito: É! Há brancos e há outros pretos, iguais aos brancos.
Doutrinador: Mas isso já foi há muito tempo.
Espírito: Mas eu não esqueci. E quando pude fui à procura deles todos. Todos os que me trataram como um cão!
Doutrinador: Não duvido. Isso passou-se em Angola ou em Moçambique, com certeza.
Espírito: Tu conheces? Ai, desculpe, desculpe... O senhor conhece?
Doutrinador: Conheço, sim senhor. Podes-me tratar por tu, amigo.
Espírito: Não o conheço. Eu sou preto, mas sou educado.
Doutrinador: Claro que conhecemos todos Angola e Moçambique. E passaram-se lá coisas muito desagradáveis. Muito desagradáveis. A cor da pele não faz a diferença, pois todos nós somos filhos de Deus.
Espírito: Ai vá dizer isso, vá. Vá dizer isso a muitos. Nem nos podíamos chegar perto.
Doutrinador: Eu sei, amigo. Tempos maus esses. Tempos maus. Que já mudaram, felizmente. Em muita coisa.
Espírito: Eu estou a ajudar para que mude.
Doutrinador: Mas não é essa, talvez, a ajuda mais eficaz.
Espírito: Mas Deus é Pai. Esse Deus que o senhor falou, que depois nos vai castigar, não. Porque Deus é Pai. Deus sabe o que sofre um pai que não tem dinheiro para dar comida aos filhos, que vê os filhos a morrer de fome e que não tem ajudas de ninguém. E correm com ele a pontapé e não dá a mínima ajuda.
Doutrinador: Isso aconteceu, sim senhor. Chama-se a isso falta de caridade.
Espírito: Deus é Pai, Deus não pode castigar preto por isso.
Doutrinador: Deus não castiga ninguém por isso. Só que, e isto talvez tu não saibas, nós vivemos vidas sucessivas.
Espírito: Vivemos o quê? Isso não é o que eu estou a dizer. Eu vingo-me quando puder e enquanto puder. Porque fizeram muito, muito, muito mal. Não se faz o que fizeram a mim.
Doutrinador: Aquilo que te fizeram foi muito condenável. Contudo, aquilo que te quero dizer é que a melhor forma de resolver a situação não é essa que estás a tomar. E eu vou-te explicar porquê. Tu estás a colocar-te em pé de igualdade com quem te fez isso. E quem te fez isso foi alguém inferior, Deus me perdoe, porque também é nosso irmão...
Espírito: Não, não! Era superior. Mandava.
Doutrinador: Desculpa, meu amigo. Moralmente era inferior. Porque só uma pessoa moralmente inferior...
Espírito: Ah, era mau.
Doutrinador: Eu estou a dizer moralmente. E nós não devemos copiar o que é mau.
Espírito: Eu não o quero copiar. Eu não sou mau como ele. Eu só quero arreliar. Ando lá de roda dele. Não o largo, desde que o descobri.
Doutrinador: Eu sei. Mas nada sucede por acaso. Sabes porquê?
Espírito: E ela também não me parece grande coisa. Agora que a conheço, não me parece grande coisa. São parecidos. Parecidos. Ele é mau. Ele é mau. Ele é mau, mau, mau. Tratava preto assim: sai daqui preto. Fora daqui, preto. Fora daqui, preto. Fora, fora, fora, fora!
Doutrinador: Isso, lá em Moçambique.
Espírito: Sim!
Doutrinador: Mas olha, isso...
Espírito: Cheiras mal, preto. Cheiras a catinga. Fora, fora, fora, fora! Aqui não é sítio para ti. Sai daqui!
Doutrinador: Mas olha: tu tens mas é que pensar em ti e não na vingança em relação a ele.
Espírito: Eu não penso em mim. Eu penso é nos meus filhinhos. Não tinha que lhes dar para comer. Nem um dinheirinho pequenino, que não lhes fazia falta.
Doutrinador: Com certeza. E tu tens absoluta razão. E esses filhinhos, certamente já estão adultos. Nunca mais os viste?
Espírito: Eu morri.
Doutrinador: Mas, se calhar, algum ou alguns deles já estão aí desse lado. Foi há tantos anos...
Espírito: Não. Eu morri.
Doutrinador: Deixa estar. Vamos pensar mas é em ti. Vamos pensar noutras coisas, porque, contrariamente àquilo que possas pensar, Deus é, de facto, infinitamente Bom e infinitamente Justo. E quando alguma coisa de mal, isto é, que nos parece a nós mal, nos acontece...
Espírito: Mas como é que ele paga? Ele tem que pagar tudo o que nos fez sofrer.
Doutrinador: Oh, amigo: não é precisa a tua intervenção...
Espírito: Ele está bem. Ele está muito bem. Se não fossem alguns que lá andam ele não estava muito mal. Ele está bem. Ele vive bem na mesma!
Doutrinador: Aparentemente...
Espírito: Ah, é o mesmo. Não mudou nada.
Doutrinador: Aparentemente vive bem. Porque a Justiça Divina se fará sentir e tarde ou cedo ele terá que responder perante a mesma Justiça.
Espírito: Mas quem é que o castiga?
Doutrinador: É a própria consciência.
Espírito: Ele não tem consciência.
Doutrinador: Pensas tu. Todos nós temos consciência.
Espírito: Não vejo. Eu estou sempre junto dele. Não vejo consciência nenhuma.
Doutrinador: Vais ver com o tempo. E quando ele chegar ao lado espiritual e se veja atormentado em remorsos...
Espírito: Ele até é mau para ela. Ele não é bom para ninguém...
Doutrinador: Deixa estar. Não te preocupes. Vamos mas é preocupar-nos contigo.
Espírito: Nem um dia eu vi. Nem um dia eu vi...
Doutrinador: Deixa estar...
Espírito: Bondade, carinho, não vejo. Como é que me estás a dizer essas coisas? Tu não conheces de quem é que eu estou a falar. Não conheces. Eu é que vejo. Maldade. Vê maldade em tudo, em todos. Tudo o que está à volta não presta.
Doutrinador: Mas isso é doença. Vamos mas é pensar em ti. E pensar em Deus, nosso Pai. Pensa mas é nos teus filhinhos.
Espírito: Não posso fazer já nada. Já morri.
Doutrinador: Podes fazer muita coisa. Agora vamos pensar em ti e em outros como os teus pais, os teus familiares, porque tens muitos...
Espírito: Tinha.
Doutrinador: E estão desse lado, também. E estão à tua espera.
Espírito: Não vi ninguém.
Doutrinador: Ora bem. E vou-te explicar porquê. É que tu tens estado só pensando, só pensando em vingar-te e atormentar esse senhor infeliz.
Espírito: Dói-me muito, muito aqui a testa. Se calhar é de estar ali naquele ambiente daquela família.
Doutrinador: Provavelmente.
Espírito: Que eu estou sempre com esta dor de cabeça, com esta dor de cabeça que me atormenta.
Doutrinador: Ora bem, então é isso mesmo que temos que começar por tratar.
Espírito: Mas arrelio-o. Já me divirto quando o vejo arreliado.
Doutrinador: Deixa estar. Tu até tens bom fundo. Vamos começar por tratar essa tua dor de cabeça.
Espírito: Tu és médico?
Doutrinador: Vais ver.
Espírito: Pensava que eras padre.
Doutrinador: Vais ver. Tu nunca ouviste falar em Jesus?
Espírito: Já. Mas nunca o encontrei aqui.
Doutrinador: Jesus é o médico das almas.
Espírito: Espera aí... O senhor padre bem dizia que íamos para o céu, mas eu não vejo nada. Ando pelos mesmos sítios.
Doutrinador: Eu vou orar a Jesus e, se tu tens alguma fé ainda, acompanhas-me as minhas palavras.

[O doutrinador ora o Pai Nosso, com muita fé, pelo que é acompanhado por este nosso irmão. Quando o doutrinador diz ‘Pai, perdoai as nossas dívidas, ele diz: ‘mas não as dele’. O doutrinador roga ainda auxílio para este nosso irmão, nomeadamente para as suas ‘dores de cabeça’ e exorta este companheiro a aguçar os seus olhos espirituais para poder divisar os mensageiros de Jesus presentes. Passam depois alguns minutos...]

Espírito: A minha vizinha Maria da Lixa!!! O que é que ela faz aqui? Ela tinha morrido antes de mim!!!
Doutrinador: Fala com ela.
Espírito: Ah! É o primeiro morto que eu vejo!
Doutrinador: Está tão morto como tu!
Espírito: Pois está. Até morreu antes de mim. Está tão morto como eu. Morta!
Doutrinador: E tu achas que estás morto?
Espírito: Estou.
Doutrinador: Não senhor. O corpo é que morreu. Tu estás vivo porque és um espírito imortal. O teu corpo é como uma vestimenta.
Espírito: Ela falava com os espíritos. A gente ia buscar lá umas ervas para se tratar. Mas espírito não é homem. Espírito é espírito.

[Este irmão dialoga com a entidade que veio ao seu encontro]

Espírito: Ah, não sei... Pois, mortos não falam... pois eu falo... Mas você mulher, você está viva. Está como estava. Até está melhor! Não sei o que é que tem... Está melhor... Hum... Então eu sou espírito? Eu sou como aqueles com quem você falava? Aiii!... Nunca pensava! Eu sou espírito! (admiração) Quer dizer: então eu agora também posso falar. Se você fosse viva também falava eu. Ia lá ter consigo e você ouvia-me. E eu que nunca encontrei ninguém assim. Ninguém me ouvia. Ninguém me ligava... Eu estou muito confuso... É muito para mim. Pois, aqui ouvem-me. Eu estou a falar e ouvem-me. É a primeira vez que me acontece. Eu falava, falava, falava, batia nas pessoas. Ninguém me ouvia... Estava morto. Pois, entendo... Ai eu não preciso de me vingar?! Fazem isso por mim?! ... Mas custa, custa vizinha! Custa muito! Porque a gente passa pelas coisas todas como eu passei. A vizinha sabe que eu passei. E depois não fazer nada? Cruzar os braços? Virar a cara para o lado, encontrando quem nos fez mal? Isso não é de homem. Não foi assim que eu aprendi. Se eu tinha alguma coisa eu ia lá e tratava ali na hora! Agora tenho que mudar?! (...) Pois ensinava-nos. O senhor padre ensinava-nos. Eram contos. Era o nosso dia-a-dia. No dia-a-dia temos que comer, que fazer a nossa vida (...) Hum, lá isso é verdade. Eu tenho que aprender. Eu não sei nada. Não sei ler. Se eu pudesse aprender a ler, isso é que eu gostava! (...) Não pode ser! A vizinha sabe ler?! A vizinha não conhecia uma letra! Só falava com os espíritos, mas não sabia ler nada! (...) Aqui?! Aqui onde vivem os mortos?! Hum... Isto é mais animado do que eu julgava! (...) Mas como é que não vi nada disso? (...) Eu vou-me embora. Tenho andado aqui a perder tempo!
Doutrinador: Ora bem, meu amigo. Aí disseste uma grande verdade... A tua vizinha Maria...

Espírito: Não via uma letra! Sabe ler! Diz que lê livros inteiros! Eu tenho que ir aprender a ler! Ela diz que há uma escola onde ensinam analfabetos desde o princípio como se fossemos crianças. E não se paga nada! Posso ir! Vou já! E há vaga lá para mim! Posso ir já, porque têm lá uma vaga. Está lá guardada para mim e eu não sabia. Mas já está lá guardada para mim há muito tempo. Eu é que andava aí perdido.
Doutrinador: Estava à tua espera.
Espírito: Estava à minha espera e eu não sabia. Eu não ouvia ninguém.
Doutrinador: Graças a Deus que vieste aqui hoje e pudeste falar connosco, como falavas com a tua vizinha Maria.
Espírito: Olha, que eu agradeço-vos muito. São os primeiros brancos que eu encontro que me tratam bem! E até ainda tenho que ficar reconhecido a brancos!
Doutrinador: Então? Não tens que nos ficar reconhecidos.
Espírito: Tenho! Vocês ajudaram-me a encontrar a minha vizinha Maria da Lixa que ainda por cima me vai levar para a escola! Que era o que eu queria! Fico-vos reconhecido para sempre! Para sempre! Não sei quanto é que é o sempre, que eu já pensava que estava morto, mas parece que vou continuar a viver. Fico reconhecido para sempre! Não vou esquecer nem deste nem daquele nem daquela, que eu já registei as vossas caras todas. Nunca mais vou esquecer. E um dia que precisarem, se este preto aqui, que não sabe nada, puder ajudar, chamem-me que eu ajudo.
Doutrinador: Olha, amigo, há uma coisa muito importante que eu quero dizer-te. A agradeceres a alguém, agradece a Deus. Porque foi Deus que permitiu que estejamos neste momento todos aqui.
Espírito: Sim, sim, a Deus. E a escola é de Deus. Não é uma escola qualquer, é uma escola de Deus. Por isso é que a gente aprende a ler tão depressa.
Doutrinador: E Deus é nosso Pai e, portanto, somos irmãos.
Espírito: E temos que obedecer ao Pai.
Doutrinador: E nada tem a ver com a cor da pele.
Espírito: Aqui não há pretos. Há, que a minha vizinha está ali pretinha, pretinha... Mas não somos tratados como pretos. A escola é de pretos e brancos.
Doutrinador: Olha amigo, eu não sei o teu nome...
Espírito: ‘Anabolo’.
Doutrinador: ...mas dou-te um grande abraço para ti. Que sejas muito feliz lá na escola. Que aprendas rapidamente a ler e a escrever... E a ler bons livros
Espírito: Não se esqueçam: se precisarem (e eu souber) chamem-me. Eu conheço umas ervinhas... E posso pedir aqui ajuda à vizinha.
Doutrinador: Olha, agora o importante é que vais aprender a ler e a escrever e, daqui a uns tempos, se tivermos autorização, talvez possamos ir visitar-te ou tu vir-nos visitar. Fica combinado. Um grande abraço, amigo.
Espírito: Fica combinado! Uma mãozada amigo! Amigo branco.
Doutrinador: Um abraço amigo. Amigo preto. E vai na paz de Deus.

[O doutrinador termina agradecendo a Deus e a Jesus todas as bênçãos recebidas nesta noite]

Manifestou-se, posteriormente, o guia espiritual dos trabalhos: o amigo Amen.

Manuel
Núcleo Espírita Amigo Amen
Santa Maria