sábado, 17 de junho de 2017

Um amigo do Kosovo - continuação (2)


Doutrinador - Mas tu eras de Pristina? Eras da capital? Já não te recordas, não é verdade?
Espírito - Eu só vejo uma cova. E vejo as minhas filhas enterradas. E quando fui acudir-lhes cortaram-me a garganta. (chora)
Doutrinador - E quando é que isso sucedeu, querido amigo?
Espírito - Num dia de grande tristeza para todo aquele povo. Que não fez nada.
Doutrinador - Mas isso já aconteceu há anos, não é verdade?
Espírito - Não sei. Já há algum tempo. Há algum tempo. Nunca mais, desde que eu os descobri. Eu estou um bocadinho confuso... porque andei anestesiado muito tempo, enlouquecido de desespero por não poder fazer nada. Não por mim, mas pelas minhas filhas. A minha mulher... tudo na vala. E eu sem poder fazer nada. Nada fizeram para merecer aquilo. Nada fizeram. Se isto é justiça, não sei... E eu tenho que me vingar. E quando acordei consegui descobrir alguns dos meus assassinos. Não todos. Mas alguns. Em nome de Alá, eles pagarão!
Doutrinador - Mas deixa a Alá fazer justiça. Não faças com as tuas mãos. Porque a justiça acabará sendo sempre feita, amigo.
Espírito - Quando?
Doutrinador - Olha: sabias que nós vivemos muitas existências?
Espírito - Tenho uma ideia.
Doutrinador - E sabias que nós não morremos?
Espírito - Não. Não morremos. Quem acredita em Alá não acredita na morte. O lado de lá é sempre muito melhor do que o lado de cá. Só que eu não consigo. Não consigo enquanto não me vingar. Enquanto não destruir aqueles assassinos não consigo ter paz. Não consigo ver o céu. Não consigo libertar-me.
Doutrinador - E não acreditas na justiça de Alá?
Espírito - Ela existe. Só que eles até agora vivem bem. Ainda não vi com os meus olhos a justiça a ser-lhes aplicada. Nada lhes fizeram.
Doutrinador - Mas deixa a Alá aplicar-lhes a justiça. Não te preocupes tu. Deixa a Alá essa tarefa.
Espírito - Mas quando?
Doutrinador - Não te preocupes quando. Preocupa-te é contigo neste momento. Neste momento não sabes onde estás. Mas eu informo-te. Estamos aqui em reunião. E a reunião é em nome do Deus de todos nós.
Espírito - Nunca assisti a uma reunião destas.
Doutrinador - Mas assististe hoje. Em nome de Alá, em nome de Buda, em nome de Jeová... em nome...
Espírito - Esse não conheço...
Doutrinador - Não interessa. É em nome do Deus de todos nós. Porque é único. Nós pertencemos a uma mesma família: a Humanidade. E é em nome dessa família que é a Humanidade que o Deus de todos nós está aqui presente. E que tu estás aqui nesta reunião connosco. Mas não estás sozinho. Tu estás no mundo espiritual e já reconheceste isso.
Espírito - Eu estou. Mas como é que eu vim aqui parar?
Doutrinador - Trouxeram-te aqui, amigo. Amigos teus trouxeram-te aqui.
Espírito - Como?
Doutrinador - Já vais ver. Neste momento estás a falar comigo, que ainda vivo na Terra.
Espírito - Eu sei.
Doutrinador - Tu estás a falar através de uma médium, que é uma pessoa...
Espírito - Isso nunca fiz...
Doutrinador - Que é uma pessoa através da qual tu estás falando...
Espírito - Eu não sabia que se podia comunicar...
Doutrinador - Podes. Tu nunca ouviste que os profetas se comunicavam?
Espírito - Mas isso são os profetas! E falam na Terra.
Doutrinador - Ora bem. E eu estou na Terra. E estou a ouvir tu a falares.
Espírito - Mas eu, como é que falo, se eu já estou morto?
Doutrinador - Não estás morto, amigo.
Espírito - Eu não estou morto. Mas estou morto. Estou enterrado.
Doutrinador - O corpo é que está morto.
Espírito - O corpo está morto. Como é que eu estou falando?
Doutrinador - Estás falando através de uma médium...
Espírito - É que no mundo espiritual não se fala....
Doutrinador - ...controlando as cordas vocais...
Espírito - Nós não falamos. Gritamos, sim! Gritamos com dores, mas não falamos.
Doutrinador - Mas aqui, neste momento, até já te sentes melhor. Confessa.
Espírito - Parece que me dói um pouco menos a garganta.
Doutrinador - Exactamente. E além disso, para confirmares que estás a falar...
Espírito - Mas isto fica-se aqui um bocadinho mole.
Doutrinador - Fica-se.
Espírito - Amolece-se.
Doutrinador - É natural. É uma pequena anestesia que é dada por uma razão muito simples...
Espírito - Mas eu não quero ser anestesiado. Quero-me vingar. Eu preciso de forças para me vingar.
Doutrinador - Não, amigo. Como é que pensas que vão passar as tuas dores?
Espírito - Não sei.
Doutrinador - Tu tens que ser um pouquinho anestesiado dessas dores que tens sentido... Mas deixemos isso. Lembras-te quais foram os temas da lição?

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