terça-feira, 16 de outubro de 2007

"Os Últimos Serão os Primeiros"


Esta é uma das muitas histórias passadas com Francisco Cândido Xavier. Impressiona pela atitude do Chico, pela sabedoria da personagem descrita e pelo surpreendente final, suscitando-nos à reflexão profunda.

"Ao longo desses anos em que tenho ido a Uberaba, conheci muita gente. Gente boa, gente meio boa e gente menos boa. Algumas o tempo vai apagando lentamente, mas jamais teriam força suficiente para apagar de minhas lembranças a figura encantadora que vocês vão passar a conhecer. Numa daquelas madrugadas, quando as sessões do Chico se estendiam até ao amanhecer, vi-o pela primeira vez. Naquelas filas quase intermináveis que se formavam para a despedida ou uma última palavrinha ainda que rápida com o Chico, ele chamou-me a atenção pela alegria com que expressava a sua vez. Vinha com passos cansados, o andar trôpego, a fisionomia abatida, mas seus olhos brilhavam à medida que se aproximava do Chico. Não raro, seu contentamento se traduzia em lágrimas serenas, finas, copiosas. Trajes muito pobres, descalço, pés rachados indicando que raramente teriam conhecido um par de sapatos. Calça azul, camisa verde, com muitos remendos; um paletó de casemira apertava-lhe o corpo franzino. Pele escura, cabelos enrolados, nos lábios uma ferida. Chamava-se Jorge. Creio que deve ter tomado poucos banhos durante toda sua vida. Quando se aproximava, seu corpo magro, sofrido e mal alimentado exalava um odor desagradável. Em sua boca, alguns raros tocos de dentes, totalmente apodrecidos.

Quando falava, seu hálito era quase insuportável. Ainda que não se quisesse, tinha-se um movimento instintivo de recuo. Quando se aproximava, tínhamos pressa em dar-lhe algum trocado para que ele fosse comprar pipoca, doce ou um refrigerante, a fim de que saísse logo de perto da gente. Jorge morava com o irmão e a cunhada num bairro muito pobre. Urna favela, quase um cortiço. Seu quarto era um pequeno cômodo anexado ao barraco do irmão.

Algumas telhas, pedaços de tábuas, de plástico, folhas de latas, emolduravam o seu pequeno espaço. O irmão e a cunhada eram bóias-frias. Jorge ficava com as crianças. Fazia-lhes o mingau, trocava-lhes os panos, assistia-os. Alma assim caridosa, acredito que sofresse maus tratos. Muitas vezes o vi com marcas no rosto e ainda hoje fico pensando se aquela ferida permanente em seu lábio inferior não seria resultante de constantes pancadas. O Chico conversava com ele cinco, dez, vinte minutos. Nas primeiras vezes, pensava: Meu Deus, como é que o Chico pode perder tanto tempo com ele, quando tantas pessoas viajaram milhares de quilômetros e mal pegaram em sua mão? Por que será que ele não diminui o tempo do Jorge para dar mais atenção aos outros? Somente mais tarde fui entender que a única pessoa capaz de parar para ouvir o Jorge era o Chico. Em casa, ele não tinha com quem conversar; na rua, ninguém lhe dava atenção. Quase todas as vezes em que lá estava, lá estava ele também. Assim, por alguns anos habituei-me a ver aquele estranho personagem, que aos poucos foi-me cativando. Hoje, passados tantos anos, ao escrever estas linhas, ainda choro. "A gente corre o risco de chorar um pouco, quando se deixou cativar", não é mesmo?

Nunca ouvimos de sua boca qualquer palavra de queixa ou revolta.

Seu diálogo com o Chico era comovente e enternecedor.

-Jorge, como é que vai a vida?

-Ah! Tio Chico, eu acho a vida uma beleza!

-E a viagem foi boa?

-Muito boa, Tio Chico. Eu vim olhando as flores que Deus plantou no caminho para nos alegrar.

-O que você mais gosta de olhar, Jorge?

-O azul do céu, Tio Chico. Às vezes fico pensando que o Sinhô Jesus tá me espiando.

Depois, Jorge falava da briga dos gatos, da goteira que molhou a cama, do passarinho que estava fazendo ninho em seu telhado. Quando pensava que tudo havia terminado, o Chico ainda dizia:

-Agora, o nosso Jorge vai declamar alguns versos.

Eu chegava até me virar na cadeira, perguntando a mim mesmo: onde é que o Chico arruma tanta paciência.

Jorge declamava um, dois, quatro versos. -Bem, Jorge, agora para nossa despedida, declame o verso de que mais gosto.

-Qual, Tio Chico?

-Aquele da moça, Jorge.

-Ah! Tio Chico, já me lembrei, já me lembrei.

Naquelas horas, o Centro continuava lotado. As pessoas se acotovelavam, formando um grande círculo em torno da mesa.

Jorge colocava, então, o colarinho da camisa para fora, abotoava o único botão de seu surrado paletó, colocava as mãos para trás à semelhança de uma criança quando vai declamar na escola ou perante uma autoridade, olhava para ver se o estavam observando e sapecava, inflado de orgulho:

"Menina, penteia o cabelo,

joga as tranças prá cacunda.

Queira Deus que não te leve,

de domingo prá segunda".

Quando Jorge terminava, o riso era geral. Ele também sorria. Um sorriso solto e alegre, mas ainda assim doído, pois a parte inferior de seus grossos lábios se dilatava, fazendo sangrar a ferida. Aí ele se aproximava do Chico, que lhe dava uma pequena ajuda em dinheiro. Em todos aqueles anos, nunca consegui ver quanto era. Depois, colocava o dinheiro dentro de uma capanga, onde já havia guardado as pipocas, os doces, dando um nó na alça de pano. Para se despedir, ele não se abraçava ao Chico, ele se jogava todo por inteiro em cima do Chico. Falava quase dentro do nariz do Chico e eu nunca o vi ter aquele recuo instintivo como eu tivera todas as vezes. Beijava a mão do Chico, que beijava a mão e a face dele, ao que ele retribuía, beijando os dois lados da face do Chico, onde ficavam manchas de sangue deixadas pela ferida aberta em seus lábios. Nunca vi o Chico se limpar na presença dele, nem depois que ele se tivesse ido. Eu, que muitas vezes, ao chegar à casa dele, molhava um pano e limpava o que passamos a chamar carinhosamente de "o beijo do Jorge". Não saberia dizer quantas vezes pensei em levar um presente ao Jorge. Uma camisa ...um par de sapatos ... uma blusa. Infelizmente, fui adiando e o tempo passando. Acabei por não lhe levar nada. Lembro-me disso com tristeza e as palavras do Apóstolo Paulo se fazem mais fortes nos recessos de minha alma:

"Façamos o Bem, enquanto temos tempo". Enquanto temos tempo. De repente, fica tarde demais. O Jorge desencarnou.

Desencarnou numa madrugada fria. Completamente só em seu quarto. Esquecido do mundo, esquecido de todos, mas não de Deus. Contou-me o Chico que foi este nosso irmão de pele escura, cabelos enrolados, ferida nos lábios, pés rachados, mau cheiro, mau hálito que, ao desencarnar, Nosso Senhor Jesus Cristo veio pessoalmente buscar. Entrou naquele quarto de terra batida, retirou o Jorge do corpo magro e sofrido, envolto em trapos imundos, aconchegou-o de encontro ao peito e voou com ele para o espaço, como se carregasse o mais querido de seus filhos.

"ESTAREI CONVOSCO ATÉ O FIM DOS SÉCULOS"

"NÃO VOS DEIXAREI ÓRFÃOS"

Ele não faria uma promessa que não pudesse cumprir."

Revista Espírita Mensal – Ano XXIV nº288 Outubro 2000

Retirado do livro "CHICO, DE FRANCISCO" de Adelino Silveira


3 comentários:

  1. Maravilhoso. Quem de nós poderá ser um dia como o Chico Xavier?...

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  2. Tem razão, Adriana: as histórias sobre o Chico impressionam. Só não posso concordar com a forma como coloca a pergunta, porque ela só tem uma resposta: todos nós! Só que uns levarão mais tempo a"chegar" que outros. Todavia, o único caminho a percorrer será sempre o da Evolução.
    Entretanto, tentemos aprender com os mais adiantados e seguir-lhes os passos.

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  3. É verdade, Joana, concordo com vc, reconheço que apliquei mal as palavras, acho que foi a admiração perante o texto! :-)

    De fato, a evolução está disponível para todos nós, basta que busquemos. E o espiritismo, graças ao bom Pai, nos proporciona isto, mostrando-nos o caminho.

    Ah, não posso deixar de alogiar seu blog, gostei, muito, parabéns. Eu também iniciei um blog com a proposta de divulgar esta doutrina maravilhosa, que esclarece e consola, ficaria feliz se vc fizesse uma visita!

    Abraços... Muita paz e luz!

    Adriana
    http://espiritananet.blogspot.com/

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