O nosso biografado acordou, no além-túmulo, com as suas chagas dolorosas, dentro das terríveis realidades que lhe aguardavam o Espírito imprevidente; mas, os eclesiásticos concordaram em pleitear-lhe um lugar de destaque nos altares humanos e venceram a causa.
Em breve tempo, a memória de Domingos transformava-se no culto de um santo. Mas, aí, agravaram-se, no plano invisível, os tormentos daquela alma desventurada. Envergonhado e oprimido, o ex-padre influente do mundo sentia-se qual mendigo faminto e coberto de pústulas. Nós, porém, sabemos que as recordações pesadas do Planeta são como forças invencíveis que nos prendem à superfície da Terra, e o infeliz companheiro foi obrigado a comparecer, embora invisível aos olhos mortais, a todas as cerimónias religiosas que se verificaram na instituição de seu culto. Domingos González, assombrado com as acusações da própria consciência, assistiu a todas as solenidades da sua canonização, sentindo-se o mais desgraçado dos seres. As pompas do acontecimento eram como espadas intangíveis que lhe atravessassem, de lado a lado, o coração vencido e sofredor. Os cânticos de glorificação terrena ecoavam-lhe no íntimo como soluços da sombra e da amargura.
E, desde essa hora, intensificaram-se-lhe os padecimentos.
Sua angústia agravou-se, primeiramente, em virtude da nova posição do círculo familiar. Os que lhe eram afins pelo sangue entenderam que não mais deviam o tributo comum de trabalho e realização ao mundo. Como parentes de um santo, não mais quiseram trabalhar. E essa atitude se estendeu aos seus mais antigos companheiros de comunidade. Os poucos valores da agremiação religiosa, a que pertencera, desapareceram. Seus colegas de esforço estacionaram voluntariamente na preguiça criminosa e no hábito das homenagens sucessivas. O grupo havia produzido um santo: devia ser o bastante para garantia de uma posição definitiva no Céu.
O Espírito infeliz contemplava semelhante situação, banhado em lágrimas expiatórias. E o seu martírio continuou.
Sabemos que um apelo da Terra é recebido em nosso meio, tão logo seja expedido por um coração que se debata nas lutas redentoras do mundo. Se o serviço postal do orbe pode estar sujeito aos erros de administração, ou à má-vontade de um estafeta, desviando do seu destino uma mensagem, no plano espiritual não se verificam semelhantes perturbações. A solicitação justa ou injusta dos homens vem ter connosco pelos fios do pensamento, na divina claridade do magnetismo universal. E Domingos começou a receber os pedidos mais imprudentes dos seus numerosos devotos.
A alma desventurada ficou absolutamente presa à Terra e, de instante a instante, era obrigada a atender aos apelos mais extravagantes e mais absurdos.
Se um criminoso desejava fugir à acção da justiça no mundo, valia-se de Domingos, invocando-lhe a memória, entre receios e rogativas. As mães desassisadas, que não cogitaram da educação dos filhos, em pequeninos, lhe rogavam de joelhos a correcção tardia desses filhos transviados em maus caminhos. Os velhacos lhe faziam promessas, a fim de realizarem um bom negócio." As moças casadouras lhe imploravam a aliança do noivo rebelde e arredio. Os sacerdotes pediam-lhe a atenção dos superiores. E, finalmente, todos os sofredores sem consciência lhe suplicavam o afastamento da cruz de provações que lhes era indispensável.
Chumbado ao mundo, Domingos, durante mais de um século, perambulou pelas casas dos devotos, pelas estradas desertas, pelos círculos de negócios, pelos covis dos bandidos.
Seu aspecto fazia pena.
Foi quando, então, dirigiu a Jesus a súplica mais fervorosa de sua vida espiritual, implorando que lhe permitisse voltar à Terra, a fim de esconder no esquecimento da carne as suas enormes desditas. Queria fugir do plano invisível, detestava o título de santo, aborrecia todas as homenagens, atormentava-o o altar do mundo. Suas lágrimas eram amargas e comovedoras, e o Senhor, como sempre, não lhe faltou com a bondade infinita.
Assim como um grupo de amigos influentes procura colocação para o homem desempregado e aflito no mundo, alguns companheiros dedicados vieram oferecer ao pobre Espírito sofredor uma reencarnação como escravo, no Brasil.
Domingos González ficou radiante. Chorou de júbilo, de agradecimento a Jesus e, em breve tempo, tomava a vestimenta escura dos cativos, sentindo-se ditoso e confortado, cheio de alegria e reconhecimento.
O nosso amigo fizera uma pausa na sua narrativa. Estávamos, porém, altamente interessados e eu perguntei:
- E o santo está hoje nos planos mais elevados da Espiritualidade? Seria extremamente curiosa a palavra directa de sua desilusão e de sua experiência valiosa...
- Não, ainda não - replicou o narrador, com ar discreto. - Domingos tem vivido sucessivamente no Brasil e; ainda hoje, continua, aí, a esforçar-se pela sua redenção espiritual, guardando instintivamente o mais terrível receio de chegar às esferas invisíveis com o título de santidade.
Mas, as obrigações comuns dispersaram o grupo em palestra e, dentro de pouco tempo, estava eu novamente só, com o meu trabalho e com a minha meditação. E nesse dia, impressionado com a história daquela amarga experiência, não pude retirar da imaginação aquele santo que trocara os incensos do altar pela atmosfera nauseante de uma senzala do cativeiro."